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domingo, 7 de setembro de 2014




foto de Yaci Andrade


Dois poemas para Caymmi

Wellington Dantas

DIÁLOGO QUE FLUI

Dorival diz: só louco amou como eu amei,
só louco sabe o bem que eu quis;
ao que Rimbaud dispara: já é uma grande vantagem
que eu possa rir dos velhos amores ilusórios.

Heráclito discorre: não podemos nos banhar duas vezes no mesmo rio
porque suas águas se renovam a cada instante.

Eu deságuo: insisto em mergulhar nesse inconstante
e também rio.

URGÊNCIA

É doce morrer no amar,
antes que o amar amorteça.
Nos olhos verdes do amar,
antes que o amar não mais veja.
Nos braços fortes do amar,
antes que o amar desfaleça.
Nas pernas rijas do amar,
antes que o amar enfraqueça.
No colo quente do amar,
antes que o amar desaqueça.

É doce morrer no amar,
antes que o amar esmoreça.
Nos lábios tintos do amar,
antes que o amar emudeça.
No riso pleno do amar,
antes que o amar entristeça.
Na cabeleira do amar,
antes que o amar já não cresça.
Nos seios firmes do amar,
antes que o amar amoleça.

É doce morrer no amar
antes que o amar só padeça.
Nas ondas verdes do amar,
antes que o amar madureça.
Nas águas claras do amar,
antes que o amar anoiteça.
No tempo presente do amar,
antes que o amar esqueça.
No infinitivo do amar,
antes que o amar findo esteja.

É doce nadar no amar,
antes que o amar nada seja.

CAYMMI — AS HONRAS DA HORA E OUTRAS ONDAS
Caymmi, negro como convém a quem de fato é fruto de amor gerado na Bahia, mas de sangue e nome também italianos, nasceu há cem anos, na Saúde de uma Salvador não irremediavelmente doente como a de hoje, quando os trilhos urbanos ainda não haviam demolido a Sé primacial. Portanto, euroafrobaiano é o santo, desapegado de tudo o que viria a ser, em desacordo com o seu legado, o empopecimento da canção. Fundante e dissidente, seu canto é bênção e seu silêncio é lição. 
Agora, é hora de bater o burocrático ponto das celebrações oficiais no redondo da data, com todas as pompas urgentemente improvisadas para que as homenagens pareçam menos inconsistentes do que são. Há sempre nessas comemorações inegável justiça e oportunismo hipócrita.
No entanto, outras ondas existem... 
Desde a infância, dão colorido à minha memória os improváveis azuis de Caymmi e o Mar, com ondas rebentando em rochas ante um estoicamente impassível e jovem senhor, a olhar para algum além de que não se sabe, mas que inequivocamente está fora do enquadramento.
Sem as pressas do agora, na calma que Dorival inspira, escrevi, há décadas, dois poemas, publicados em 2010 no livro Adiantamento da Legítima, de minha autoria. Neles, assim o evoco com a admiração da criança que cedo o ouviu por gosto e apontamento dos pais: 
Anacoreta avesso à fome de fama, ele cantou muito sabiamente: “Pobre de quem acredita na glória e no dinheiro para ser feliz”. Logo, São Francisco Salvador. Sim, euroafrobaiano é o santo. Soterofranciscano. E o que lhe foi circunstante nos é bem menos longe e exótico do que possa parecer.
Tudo o que ele nos cantou nos é tão próximo e ainda está tão perto, apesar de cada vez mais triste e dessemelhante. Salvador, 30 de abril de 2014. W. D. Cavalcanti



Um comentário:

  1. Celso, Parabéns pela excelência do seu Blog!

    Belo e primoroso texto do W.D. Cavalcanti!
    Destaque para a genial contextualização.
    Aplausos demorados!

    Gratíssima pela publicação da imagem de minha autoria.
    Abraço,

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