A Peste
de Pã
tirado do cínico sono
que antecede o sol cruel
em manhã sem data certa
rasgada no calendário
cachorros sequer latiam
só o arranhar de rodas
no asfalto estremecido
e um murmúrio humano
nunca antes ouvido
fezme ir à janela e
abrisse num gesto duro
e o que vi mudo e cego
transitam macas de ferro
levam em plásticos clínicos
azuis rubros roxos pretos
figuram restos mortais
de gentes remotas
milhares de féretros
empurrados nas ruas
por máscaras e múmias
coração veias estampidos
pólvora de todo o povo
o horror vestia trapos
tranqueime em estopa
nosso teto tremulava
os livros esfarelavam
as paredes pingavam
um sangue exangue
obrigame a fugir de cena
abrigarme debaixo da pia
imagina tocar a flauta de Pã
bato os chifres no muro
o bambu me fere a boca
os caniços sopram lamúrias
a constelação explodeemdor
estertoramos amigos meus
a bordo do navio à deriva
jogar os fantasmas no mar
ondulantesdetudoqueénada
(foto da agência AFP)
Celso Araujo, 06.06.21. BsB