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quarta-feira, 12 de setembro de 2018



Tarsila do Amaral/série Antropofágica


a jaula


estou na jaula de caibro e correntes
jaula que cabe só a mim no quintal
da casa do comerciante comprador
seu contentamento ao me prender
atraiu curiosos vizinhos e pastores

a carne foi lançada quando o sino
bateu às seis da tarde dos anjos
devorei-a como se fosse de humano
sempre os mirei na floresta da caça
ouvia e fugia dos tiros farejadores
fui capturado à noite corisco trovão
caí depois dum tiro leve de espingarda

a jaula é de ferro e teto de zinco
é quente e fétida tal lajedo ao sol
noites calmas e dias de visitação
sucedem-se morcegos aves cegas
passam no alto de um céu piando

me mostram pros meninos
me mostram pros ciganos
me mostram pros paganos
mulheres de olhos profanos
e eu urrando jorrando pus
pelos olhos de tanto espanto
no entanto cresço a olhos vivos

além de comer dormir e urrar
articulo com as presas e unhas
uma quebra do ferrolho metal
e ninguém percebe ruir ranger
sou ou não sou a onça do sertão
desmontei a ferocidade encenada
quebrei o cadeado na madrugada

foi espavento esparro espessura
quebrei as portas num fôlego só
me joguei nas ruas de pedraria
enquanto dormiam carcereiros
ouvi ainda seus roncos e risos
mas rumei bem veloz ao rio vivo
nadei corrente e profundeza    

a fome era felina e famigerada
aquele dono queimasse a gaiola 
a cidade que fizesse penitência
seus ferozes devoradores de ar
respirassem debaixo de telhados
tolos e felizes como não entendo    

afundei-me nas terras antes minhas
muito de mata de água de lagoa
capoeiras e grutas em que me fui
num penhasco molhado pressinto
aguardam outras feras sabidas do
mesmo furor fúria e florescer ao ser
à toa

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