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quinta-feira, 20 de setembro de 2018


sem título/óleo sobre tela/Ismael Nery/site da UFJF,MG.


misererê


vamos pedir misericórdia
não miséria nem opressão
sim à compaixão do blue 

vamos chamar a concórdia
não de acordos por medo
sem os acordes desterros

o azul em desmaios tons  
vamos pedir a esperança
miserere em anchos cantos

vãs noites estações vulgares 
dias únicos em poucas horas
e riso flores incensos rosas

a serem encontrados agoras
abram espaços nos impasses
sejamos exatos nos compassos

ou não sejamos mesmo em cacos
quebrados galhos fazendo música 
do caosmos barulhante brilhento

a história disfarçada de verdade
veste negro espartilho de velcro
é atriz tragicômica fora do foco

memória não é mares de lama
a educação dos sentidos clama
não é pra humano algum conceber 
nação
em chamas
cinzas
muda 

quarta-feira, 12 de setembro de 2018



Tarsila do Amaral/série Antropofágica


a jaula


estou na jaula de caibro e correntes
jaula que cabe só a mim no quintal
da casa do comerciante comprador
seu contentamento ao me prender
atraiu curiosos vizinhos e pastores

a carne foi lançada quando o sino
bateu às seis da tarde dos anjos
devorei-a como se fosse de humano
sempre os mirei na floresta da caça
ouvia e fugia dos tiros farejadores
fui capturado à noite corisco trovão
caí depois dum tiro leve de espingarda

a jaula é de ferro e teto de zinco
é quente e fétida tal lajedo ao sol
noites calmas e dias de visitação
sucedem-se morcegos aves cegas
passam no alto de um céu piando

me mostram pros meninos
me mostram pros ciganos
me mostram pros paganos
mulheres de olhos profanos
e eu urrando jorrando pus
pelos olhos de tanto espanto
no entanto cresço a olhos vivos

além de comer dormir e urrar
articulo com as presas e unhas
uma quebra do ferrolho metal
e ninguém percebe ruir ranger
sou ou não sou a onça do sertão
desmontei a ferocidade encenada
quebrei o cadeado na madrugada

foi espavento esparro espessura
quebrei as portas num fôlego só
me joguei nas ruas de pedraria
enquanto dormiam carcereiros
ouvi ainda seus roncos e risos
mas rumei bem veloz ao rio vivo
nadei corrente e profundeza    

a fome era felina e famigerada
aquele dono queimasse a gaiola 
a cidade que fizesse penitência
seus ferozes devoradores de ar
respirassem debaixo de telhados
tolos e felizes como não entendo    

afundei-me nas terras antes minhas
muito de mata de água de lagoa
capoeiras e grutas em que me fui
num penhasco molhado pressinto
aguardam outras feras sabidas do
mesmo furor fúria e florescer ao ser
à toa

sexta-feira, 7 de setembro de 2018


Harold Lloyd no filme Safety Last/1923


calar ou cantar

colapsar ao sopro roído não
digo não ao ridículo
retrato telas ao redor
me empurrando rumo
à tal depressão virtual
girando escrota a rota
das horas implacáveis

levanto-me para alongar
o tronco e os membros
e não sucumbir ao mesmo
ente  indesejável de tempo
ardente em fogo facínora
enquanto a tarde avança
sobre o teto de amianto

foda-se o mundo imundo
sairei dos clichês e focos
quando a cena terminar
com o prazer dos atores
que não se subestimam
sofrem no papel mas lá
no fundo do peito eles
ou elas deliciam outro
o teatro é minha pessoa

coração sejas alteridade
e cantando viverás.

sábado, 1 de setembro de 2018


foto de Tayla Lorrana em expô de Yayoi Kusama/2014


na parada


anjos em andrajos andam de lá pra cá
de cá pra lá buscando ao léu drogas e
talvez um céu para insolúveis paradas
adejares na rodoviária pela via do real

nem percebem que humanos como eu
perecem em sua demente impressão
e sucumbem ao som das máquinas
cortando o concreto mais uma vez

este marco zero da cidade não terá
paz nunca por ser o problema em si
instalado na interminável obra piloto

só mesmo o capiroto pra livrar o plano
da melancolia imensa obscura necrópole
salve lotação que me afasta delinferno