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quinta-feira, 26 de junho de 2014


foto CA, na Biblioteca Van Gogh, Sobradinho autor não identificado no local


variação grave para os garis


parece música de alemão pós-moderno,
tsunami, pororoca, protofonia de laboratório,
zunidos tremembés, tucanos, trepidantes,
a caçamba stockhausen passa pelo conjunto calado
satélite cidade consagrada ao nada de um
documentário de antes, noite nublada de inverno,
cascata delírio deboche dramalhão e inferno.

distante chegando próximo o som do caminhão
vem num crescendo que agita a noite encapsulada.
passa de um conjunto ao outro, em frente às casas,
leva escritos da escola, as preces escritas, sucatas.

ora, o que se aproxima dessa vila
é sonoramente a grande colhedora de entulhos;
no asfalto encolhido, vem esbanjando freios
enquanto os cães emitem seu sons entredentes;
lâmpadas projetam os estivadores da noite:
sombras, são três os de sempre garis pendurados
nas fardas e nos ferros do veículo vil.

o motorista fantasma alérgico à lama
não quer saber de paradas silenciosas nem
de carbônicos gases da jamanta máquina,
não quer saber dos moradores ou vultos.

os homens contratados para este serviço do mundo
lançam sacos sujos, rasgados de supermercado
e a corrente deletéria de volumes podres
de todas as raças, classes e origens,
lançam-se das calçadas ao asfato, ao bojo do carro.

quadra urbana que não se diferencia no trato
do mundo, das crianças, dos seus pequenos mimos,
aquários ou animais soltos, garagens e
os cães, estridentes latidos, constroem um lamento,
que lamento! os cães humilham os garis.

de casas, escritórios e mercados mais distantes,
as sobras, as nojentezas, até bizarras belezas
como flores viventes, pingentes de feira, orações
impressas em papel bonito, caixas de design.

a noites alongando-se, mais que prevista,
em caçambas e mais caçambas, em garis e mais
garis, os colhedores do feito, dos defeitos deletados.
os que buscam e jogam no ar nossas imperfeitas
contribuições ao mundo em lixos estruturais,
deixados à margem da rua como pacotes podres.

esses os garis de idades diversas, desconhecidos
entre si, tão camaradas quanto uma noite estrelada.
um dia entenderei por que os cães os hostilizam,
porque por que e ainda que rápido descaso é
esse cometido todas as noites na geringonça da
cidade dada dadaísta dominada distanciada de tudo.

      

sexta-feira, 13 de junho de 2014


letra de canção
Belo Oásis
1980

letra de canção para Joni Mitchell
musicada por Lucio Ricardo e Calé Alencar/1980

belo oásis

eu olho pra você
abrindo asas nas canções
minha fada do deserto
belo oásis
abençoa toda noite
em que atravesso calendários
mesmo de tão longe
belos olhos
fale aquelas palavras intraduzíveis
mas tão doces
mesmo nebulosas
belas guitarras
sua língua entre os animais
aqueles que já não se encontram mais
nos supermercados
sua voz
realmente a sua voz
divagando nas canções.

ouça AMELIA
http://www.youtube.com/watch?v=gcTDoi9JQiY

arte de Lichtenstein

beijo


beijo é tudo que é perfeito,
presente mais que futuro,
pretérito de tudo que se desejou,
gesto eterno sem matéria,
pergunta ao teu corpo,
resposta que jamais se encontrou.

beijo que se apaga em ondas
e se propaga nas sombras,
iluminado em nódoas de prazer.

gesto vagamente repentino
como um raio temporão;
quebra o céu, quebra o ar,
quebra  o chão.
bêbada conjugação , 
verbo, lábio, esse bolero,
que beija você no silêncio dentro de nós.

Fortaleza, 1980, letra de CA, melodia de Calé Alencar



quarta-feira, 11 de junho de 2014


foto de Chico Albuquerque

letra de canção

Fortaleza


debruçadas
nos muros da cidade
as mamonas choram
violência paciência
tenho alma
presa à tua carne
a noite azul cobriu de dor meu peito
eu ando atrás de um futuro perfeito
mais que a morte
mais que este século que se consumirá

rosas tristes
das pobres multidões
secas de carinho
crueldade nas calçadas
passos presos
coleção de medos
um gato branco me crivou nos olhos
lembranças tuas mortas no caminho
mais que a lua
quando em Fortaleza cai no mar

Fortaleza/CE/1980

terça-feira, 10 de junho de 2014


foto CA/2012


sós palavras


só palavras iluminam caminhos
só palavras separam o espinho das rosas
só palavras totais, não palavras quebradas,
articulantes palavras, não são pedras, são ilhas
e as palavras em pó são palavras do devir.
o destino não se mede nem se mete 
com palavras que se armam árduas armadilhas
sem palavras que rastejam como destinos
destituídos de  canais, de cais, de cicatrizes.
palavras pulam sobre o pescoço de outras
onças,  artérias, órgãos, anatomias
quebram, estalam, fazem a perdição
que as falam, denunciam o lugar do crime,
chamam as abelhas, espantam os cães
a faca no rio, meandros de Polanski,
ondas onde a terra acaba.
palavras entram pelo cano, e saem em silêncio,
falsas cenas montadas do poeta de Stalker,
gritando penetram a linfa, o sangue, o metabolismo
palavras enroscam-se nos cordões do corpo 
de suplicantes, celebrantes e semblantes,
espelho do que foi divino e dividido
dentro de mim, dentro de ti, desconhecido
oculto em sua própria aparência e epifania,
criatura não se revela, avessa a si, ao seu mistério
seja vulgar ou bacana, seja ordinária ou inefável.
Vou é me calar, vou afundar no silêncio,
dessas palavras sós não saem coelhos, 
densas palavras nos deixam exaustos,
como flores de flamboiã logo em seguida à queda. 

sábado, 7 de junho de 2014


foto CA/2012


a lindeza


em vias do eixo da cidadescombro
minha roupa blindada causa estranheza
frios ossos, na pele e no deslocamento.
estou num histórico movimento, mas
o momento é de videogame, de filme
que passa dos limites da ficção.
da balaustrada dos palácios reais,
acompanho a plenitude do plano
pendendo para todos os lados,
e da rodoviária começo, lentamente,
um percurso entre os restos do mármore,
as vigas, as falhas e as perfeições do concreto.
ouço voz parecida com a de Leonard Cohen.
percebe-se que nas passagens de nível.
há policiais despitados, num contentamento
de guerra que só em documentários de tv
se vê, numa parede fatiada, leio a oração:
esses vossos olhos misteriosos a nós...
vou arrastando peças modernistas, com
um esforço descomunal, sem roubo ou pavor,
ninguém quer o tesouro com o qual atravesso
as tesouras, pontes, passagens de pedestre.
marcho até à satélite em que moro,
convicto de que essas peças, correntes,
anônimas, mais antigas no cerrado devastado
peças desmontadas do patrimônio de meio
século - os itamaratys vomitaram suas artes;
recolho os painéis, rastros de azulejo
-ser um catador do que não querem mais e
poder carregar nas costas esse patrimônio
sem valor, sem destino, sem deuses em guerra
são uma vitória para os que me esperam -
os familiares que são os pilotos da família
ficarão surpresos com tantas pompas
lindezas que nunca busquei; apenas catador
e jogo sobre o corpo como manta, moeda,
pensando no pai, mãe, avó e irmãos pequenos.
na curva do conjunto da quadra, escurece
claro, não há postes de luz, e penso
o quanto tudo será salvação e inauguração
mas, por um vacilo no caminhar, acordo
sem tesouro, sem família, somente visagem
e respiro fundo, e a imago traz uma luz.