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segunda-feira, 8 de setembro de 2014



Alda Maria em foto de Wolfgang Pannek

teatro/comentário


Androgenia passada a fogo


Um ser humano de qualquer lugar deste mundo, delicado, seguro, insinuante, recebe o público, em pé no centro de uma cena vazia, com um fundo cenográfico branco... Pode ser um bilheteiro de cinema, um vigilante de trem, um soldadinho de chumbo, um pierrô noturno e anônimo, uma garota à espera do outro.  Mas a pequena criatura levada vagarosamente por uma onda de ironia se desfaz no escuro, e é da escuridão que surge em desdobramentos a figura da performer Alda Maria Abreu, integrante do núcleo Taanteatro, instalado em São Paulo, sob direção da mestra Maura Baiocchi, na obra intitulada Androgyne – Sagração do Fogo, no Teatro Garagem da 913 Sul. 

A sintética instalação cenográfica é de Wolfgang Pannek, fera de múltiplas funções, como sua companheira Maura Baiocchi, uma das grandes criadoras de teatro/dança/performance das artes contemporâneas e que, em caso excepcional, atua até como bilheteira do próprio espetáculo que dirige. Imagina: Maura Baiocchi na bilheteria, ela que já levou espectadores de várias partes do mundo “à loucura”. A música é de Gustavo Lemos, replicando, multiplicando, acentuando bravamente o que logo se verá-viverá.

Um sopro e a boneca de vento vai traçando o seu teatro de operações, com as armas próprias do corpo. Corpo esquizo? Não, corpo são em mente sagrada, máxima pesquisa de dias e noites de método, pesquisa, associações libertas. E o que vai se desenhando diante dos olhos nossos é uma grande dor, uma cirurgia de musculaturas e tensões que se debatem, contorcem, refazem, descem e sobem (catábase e anábase), despertando-nos da letargia para uma presentificação em que o expressionismo parece ser a linha do trilho. Mas a estrada é mais fértil e farta: são poucos os minutos e largo o tempo em que Alda atravessa evocações do corpo andrógino, em sopros que evocam os sonhos de cada um. Não há alopração, hein! Tudo é resultado de uma partitura de signos quentes. Não há finalizações, como nas artes bem acabadas, há interrupções bruscas, cortes delicados, línguas dobradas. O corpo revela forças inauditas, ao expor tensões físicas, sintáticas, semânticas, intermodais e pragmáticas, como está claramente descrito no livro Mandala de Energia Corporal, de Maura e Wolfgang, em sua preciosa série de publicações do Taanteatro.

Cultura, história, ideologias, versões de filosofia e poética, se dissolvem no espaço e no tempo. Quanto à androgenia, o caminho mais direto é ler e ouvir-se em Sigmund Freud. Perdemos a noção, pois aqui a mandala se espatifa em átomos, para o olho imaginante, para a colheita de frutificações dos órgãos humanos. A questão em cena, declaradamente, é a de uma identidade sexual que também imaginamos existir. Alda vai longe...os horizontes são tão largos que podemos pensar no Egito antigo, no arcaico Japão de Hijikata (mestre do butô), nos ancestrais ritos afro-brasileiros, nos inclassificáveis classificados da espetacularidade contemporânea.

A performer, que é atriz e dançarina, vai às profundezas de sua musculatura e isso dói, nela talvez, em nós mais ainda. Planos, cortes, contorções, choques extremos nos membros, uma nudez que só se vê nos inconscientes movimentos da energia mutante. É uma arte de espelhos que se quebram, de cabeça, tronco e membros arregalados, num redemoinho que faz os leitores de Nietzsche, Artaud, Deleuze e outros pensadores de nossa alienação virem à tona, quase de maneira límpida e curativa.

Alda Maria Abreu, pequena figura que se amplia nas sombras e nas dobras e expõe seu ventre - suas coxas, sua vulva e sua língua, seus olhos de medusa e seus cabelos de uma antiguidade atualíssima - celebra sua passagem-travessia pelos nossos medos e perplexidades. Morde-se, morre-se, ressucita-se. Ressucita-me, ainda que mais não seja. 

Uma dica: Taanteatro é uma das escolas mais radicais, refinadas e exigentes do teatro contemporâneo, leia mais no www.taanteatro.com. Outra: Alda é filha de santo de Maura, ambas filhas de santo de Hijikata, Kazuo, Frida, Chaplin, ou melhor, das florestas, dos yanomamis, dos tibetanos, dos nigerianos, dos bárbaros, de Isadora, etc.. Outra: depois do vôo sobre todas as indiferenças da vida, vejo logo depois, na realidade, uma pequena multidão que segue carros de som e palavras de ordem, na suja rodoviária do Plano Piloto, esbanjando-se nas buscas do que chamam de Parada do Orgulho LGBT. Tão próximos e tão distantes. No ônibus, a criançada que vinha da festa parecia falar do mesmo assunto, atônita, aleatória. 

E mais uma dica: fico imaginando uma obra-operação como essa vista por uma multidão de sujeitos, o que não provocaria! Fibras se alargariam, nervos seriam expostos, as primitividades dariam em carnaval. 

Por fim, para respirar fundo e tomar meu banho no quintal, ficam as palavras quase premonitórias da própria Alda Maria citada numa das preciosas publicações do núcleo Taanteatro: “Desço abaixo do mundo. Triplico de tamanho. A pele solta do músculo, o músculo solta do osso e o osso da alma. Ouço a música de meus ossos chacoalhando. Grito esse som. A carícia do vento leva embora pequenos pedaços de pele e tira o véu que ritualiza meu encontro com o ar. Pele, músculo e osso ganham distância entre si e, a despeito das leis gravitacionais, levito por todos os lados, vejo meu corpo material expandir-se no ar. Só alma, só espírito, sou estado de matéria em suspensão”. 

O teatro, feliz ou infeliz(mente), ainda É para os que vão até à ágora aberta, às grutas ou catacumbas perfumadas, em que há saídas para o mais promissor dos pranas. (CA, 8.8.2014)

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