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sábado, 10 de maio de 2014






teatro/comentário

SÃO PAULO CHICAGO
foto de Eduardo Martins



São Paulo Chicago, corte cirúrgico no teatro 

Com a jam session cênica São Paulo Chicago, cartaz de maio no teatro da SP Escola de Teatro, a fabulosa dramaturgia de Francisco Carlos parece dirigir seus remos, velas e bússola para uma nova esfera do teatro. Francisco, amazonense que atuou em Manaus, Rio, Belém e Brasília, hoje radicado em São Paulo, é o navegador de um teatro etnográfico, irônico e intelectualmente diversionista, um radical nos sentidos do drama.

Agora, penetra uma esfera mais complexa; uma estética escancaradamente madura. A ousadia do autor agora se insere com mais definição de imagem, linguagem e montagem, abrindo campos inéditos no teatro brasileiro, apontando para aquilo que talvez tivesse sido óbvio, mas não foi: um teatro historicamente (rigor, inteligência, poética) voltado para o público do país em que é feito, a princípio. Épico-étnico-escaneado do Brasil esquecido.

O texto é como uma “mina de ouro”, explorada pelos bandeirantes paulistas, nos tempos da colonização (os séculos 1600/1700), na passagem do século 19 para o século 20 (reconhecidamente louvada, ideologizada e incorporada). É quando São Paulo se faz o centro industrial do país, depois da ascensão e queda da monocultura do café. O múltiplo Francisco Carlos chama a atenção por sua audaciosa abordagem: como é que até hoje poucos (alguns raros o fizeram sim), se aventuraram por uma dramaturgia reveladora de um tempo histórico (ou outros) do Brasil? Francisco traça o seu plano de voo e amplia os documentos de uma fase crua e crucial da nossa ideia de nação.

Sua jam session é denominação exclusiva e própria do fazer desse diretor de cenas, e de atores, nunca antes imaginadas. Assim, São Paulo Chicago é como se fosse, e é, um clássico de vanguarda em nossa língua e paisagem teatrais. O criador de teatro, nesse caso, conta uma história, sim, mas uma história circum-navegante, sustentada em vanguardas clássicas e invenções, “tipo” jogos de ironia, personagens desconfigurados, sutis coreografias desenhadas para o simbólico grupo de doze atores ou em punhados ou solo (solitariamente, nota-se).

Ora, como se passa a peça? Temos que ser sagazes ou não conseguiremos nos divertir. Ela se passa como numa sessão secreta: atores vestidos à burguesia de uma época precisa, em torno de uma grande mesa e um único objeto-máquina: a cafeteira soberana de onde todos os atores bebem café por duas horas de evocação da Paulicéia, não apenas desvairada, mas devassada em suas linhagens familiares, em seus protagonistas perdidos, ancestralidades do outro. A peça é uma overdose de café e embriaguez lúcida.
Outra tentativa de falar do que se trata: Francisco Carlos não escreve de um gabinete fechado. Ele quer saber da Grande Cidade dos Barões do Café. Os doze atores-apóstolos-apóstatas estão representando o que, classicamente, se chama de work in progress, ceia sem milagres. Para chegar à cena, seminários, pesquisas e discussões foram realizadas. Do melhor café, Francisco bebeu também.

Ao desfazer-se de personagens explícitos (a)s, ousa como um semiólogo. Ao brincar com a memória, ele recupera o patrimônio, as fantasias, as ideologias, as contradições do que foi vivido e do que foi mitificado, as entranhas dessas vedetes. Como ele próprio define, vedetes políticas e culturais. O coro de historiadores (nem sempre; muitos eram mais armação de poder) do Instituto Histórico de São Paulo, naqueles anos de republicanização do Brasil, nos faz rir com sua insônia cívica, desdobrando-se na marcação na monumentalidade no conjunto e no corpo, improvisando de maneira como nas construções jazzísticas com xícaras e pires. Achados insondáveis do encenador perspicaz.

Os paulistas, esses brasileiros que marcaram sim toda a “brasilidade”, glorificam-se, deliram sobre si mesmos, são as locomotivas, são os bandeirantes cruéis que exibiam as orelhas cortadas dos índios, as devassas da elite cafeeira, os sonâmbulos de um tempo. SP Chicago é uma sessão espírita. Ao quebrar padrões, com estalos de elegância e precisão temático-dramática, Francisco cumpre o que promete no seu postal-programa distribuído antes do público entrar nesta sala de honras e desonras, de happenings e vexames e espantos, ali na Praça Roosevelt, no centro do centro da capital da grana. Marcante a cena dos temporais e dos atores jogando-se inertes sobre a mesa e no solo, quando se percebe de vez que há uma trilha sonora muito bem equacionada por Kleber Nigro.

O teatro desta feitura está em diálogo e similaridades contrastantes com a produção de Zé Celso Oficina e Antunes Filho Pau Brasil. Francisco Carlos e seus atores (ah, a grandeza dos atores...). Nessa peça, muitos fazem o melhor, alguns vacilam, outros são estranhos, mas nada fora da inteligência de Francisco na escolha de atores-tipos. O ator André Hendges se impõe pela gestualidade e desempenho, mas há no conjunto de doze muitos outros atores e atrizes de presença entusiasmática.

Impulsos visíveis, como queria Grotowski. Ou  a variedade de elementos poéticos, corpóreos, gestuais, como  pensava Arrabal e seu teatro do pânico. Ou o tropicalismo (aqui refinado), como evocam as nossas chanchadas, o Cinema Novo e o Udigrúdi, o próprio Tropicalismo e concretismos.

Francisco, neste teatro que interessa, é uma criatura que não cria monstros-monstrinhos-monstrengos. Cria cosmogonia, nos deixa agoniados e satisfeitos comme Il faut dans une jam session.  E o melhor, para todos, o projeto sobre essa história toda se desdobrará e prosseguirá na SP Escola de Teatro, que com este espetáculo já pode pensar em exportar para o país esse movimento ímpar. (Mais? Busque nos buscadores ou veja no site www.spescoladeteatro.org.br).


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